sábado, 3 de fevereiro de 2018

A Anfitriã

   Depois do ultimo convidado estar finalmente satisfeito a ponto de sequer respirar, a tempestade fora da casa finalmente parou. As janelas estavam todas estilhaçadas, como se tivesse estado dentro de um micro-ondas, e de certa forma estiveram. Cinzas começaram a cair do céu, dando a sala de jantar a aparência dos meses do inverno. A anfitriã, saindo de uma escotilha debaixo da mesa da sala vizinha do salão de jantar, começou a procurar entre os convidados algum sinal de vida. Protegida por uma mascara e uma roupa ela sabia que ninguém sobreviveria a aquela luz. O ano é 1985, dois anos depois da queda do muro de Berlin. Ela era a ultima mulher da terra. De repente, ela escutou uma batida. Alguém estava a sua porta.
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  Em 1953, na Virginia,  Holden Ford e a Dra. Ann Wolbert Burgess iniciaram uma pesquisa sobre a mente humana que seria revolucionaria para entender uma peculiaridade que afeta uma em cada 25 pessoas. Seria. A pesquisa foi terminada após a morte súbita do diretor do quântico. A anfitriã pensava no quanto aquele estudo se estivesse completo não a ajudaria a entender a sí mesma. Ela pensava nisso ao mesmo tempo que flertava com o poderoso general do Grão-Pará a sua frente. Os convidados estavam todos entretidos, absolvidos em suas mais intimas taras. A anfitriã servia jantares que atendiam desejos que as pessoas sequer sabiam ter. Um bipe, uma vibração, ela se afastou do general com uma piscadela-volto-logo. Na sala adjacente ao salão, ela tirou o pequeno aparelho eletrônico da bolsa, e viu a mensagem. Ela tinha 10 minutos. Foi até a cozinha, e chamou uma empregada chamada Carla. Ela tinha a mesma altura, e era parecida nos traços e na cor da pele. 

-Vista isso(ela disse tirando o vestido e os brincos), pegue a melhor garrafa de vinho da adega, sente-se no colo do general e diga "A anfitriã disse que logo logo o senhor vai ter a coisa real".

Carla hesitou.

-Cinco anos de salário. Para todos.

Os outros empregados pausaram suas tarefas para olhar e pressionar. Quando a generosidade (e  as vontades) da mestra da casa eram recusadas, a consequências vinham para todos.
Carla começou a obedecer. Era natural (para a anfitriã) como as pessoas ao seu redor pareciam peças em um jogo. Com o incentivo certo quase todos o cenários eram possíveis.  Agora a anfitriã tinha 5 minutos. Subiu até o seu quarto e pegou uma chave que estava escondida no forro do teto. Desceu as escadas pensando em uma musica de uma banda antiga " as balas gritavam morte enquanto voavam" tirou o tapete do comodo e abriu a escotilha. Escutou o general rindo. Ela sabia que a verdadeira paixão daquele homem eram as boas bebidas e não mulheres. Fechou a escotilha, e pensou: O que será que os misseis gritam enquanto voam ?
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  O gerador estava parado. Alguma coisa estava bloqueando a saída de ar do exaustor. Ela sabia que as primeiras horas eram essenciais ao plano e que a radiação fora do abrigo poderia por tudo a perder. Começou a juntar suprimentos e a fazer cálculos. Depois da saída dela, a ventilação ainda funcionaria por dois meses, mas, pelos seus cálculos, a radiação fora da escotilha poderia a deixar doente em poucas horas.  Abriu a escotilha, já vestida com uma roupa protetora e carregando sua caixa com ferramentas. Passou pelo salão cheio de convidados. Imaginou o cheiro de seres humanos cozidos em suas roupas, mortos apenas pela luz da explosão. A roupa filtrava odores. Alguém, ou alguma, coisa bateu a sua porta. Ela foi até lá e abriu. Um homem na casa dos 40 anos, com visíveis queimaduras e uma menina aparentemente incólume estavam a sua porta. Empregados? Pai e filha ?
- Por favor, por favor...
O homem não conseguia falar direito, devia estar muito mais machucado do que parecia. Ele parece familiar. A anfitriã o amparou pelo ombro e o levou até um sofá. A menina os seguiu. A mestra da casa disse com uma voz meiga a menina:

- Qual é seu nome anjinho?
A menina sentiu que podia confiar nela. Apesar da roupa assustadora, atrás da mascara transparente um rosto calmo se mostrava a menina.
- Rita.
A anfitriã se lembrou, aquele homem morrendo em seu sofá é um de seus motoristas. O nome? Não era mais importante.
- Rita meu anjinho, seu pai vai ficar bem.

Não vai. Mas, se outra pessoa desentupi-se a saída de ventilação, os riscos de rasgar a roupa seriam mínimos.
- Meu nome é Carla e eu sou médica.

Não havia necessidade alguma de mentir, mas, o hábito estava enraizado. 
- Eu posso colocar ele aqui nessa portinha (disse enquanto levava Rita até a entrada da escotilha, ao mesmo tempo que bloqueava com o corpo a visão da sala de jantar).
-Mas, você vai ter que  ajudar a abrir a porta.
A menina acenou com a cabeça. Elas caminharam para fora da casa, não era mais possível ver a cidade no horizonte. O ar ainda estava úmido, as paredes da casa estavam escurecidas por uma água negra trazida pela tempestade. Elas caminharam por alguns minutos e chegaram até onde estava a saída de ar do abrigo subterrâneo. Em uma parede, há dois metros do chão, havia uma pequena abertura quadrada, e ao redor desta varias plantas trepadeiras. Um corpo, com roupas de jardineiro, estava preso pendurado na abertura. Uma escada-de-trabalho estava na base da entrada. 

- Que sorte a nossa Rita, vai ser fácil abrir a porta. Volte para onde esta seu pai, eu cuido daqui.
A menina hesitou um pouco.
- Vai anjinho, eu vou logo logo.
Quando a menina saiu do campo de visão, "Carla" empurrou a escada derrubando o corpo. As plantas serviam para camuflar a saída de ar, mas, não podiam crescer ao ponto de bloqueá-la. O finado jardineiro tinha feito um bom trabalho, com exceção de morrer no lugar errado.
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   Pequenas batidas, e soluços acompanham a anfitriã enquanto ela tira a roupa de proteção. A menina está com uma dose baixa de envenenamento radioativo. Pode sobreviver. O abrigo é grande o suficiente para as duas. Há comida o suficiente para ambas por anos. Os soluços aumentavam, um choro familiar entre eles. Durante todos os anos de sua vida a anfitriã tinha enganado muitas pessoas. Vários ao descobrirem já tinham chorado daquela maneira, era como se existisse uma quantidade de maneiras limitada na humanidade de lidar com a frustração. Mas, ela pensou por um instante: Talvez finalmente estivesse sentindo culpa na vida. Porque deveria ser impossível escutar alguém chorar estando do outro lado da escotilha.   

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