segunda-feira, 30 de março de 2015

Asmático e Noturno.

 Chego em casa um pouco mais tarde, os ponteiros do relógio estão juntos no topo. Me sinto cansado das escadas e um chiado de rádio velho acompanha minha respiração. Me jogo na cadeira e deixo ela girar pelo escritório,  a mesa embaixo da janela, os porta-retratos vazios, o corredor para o quarto, o corredor para a cozinha, o circulo se completa.

Me sinto meio grogue pela bebida que não devia ter tomado e meio bobo de uma saudade doce, aquele sentimento perigoso que faz esquecer o que é ruim, que cega para o obvio. Sonolência.

Pouco antes de dormir vem a tosse, o chiado aumenta e a minha constante amiga asma vem me visitar. Tento chegar até a gaveta de remédios mas, tudo escurece. A tosse piora e o chiado parece estática. Tem algo rastejando minha garganta, começo a engasgar, o chiado silencia e não respiro mais. Então é assim.

  Chego em casa um pouco mais cedo, os ponteiros do relógio estão juntos na base. Vou até a cozinha pegar água, as escadas me deixaram com sede. Volto até o escritório com vontade de escrever. Os exercícios me deixaram bem disposto. Começo a organizar os papeis em cima da mesa mas, um reflexo na janela me faz virar. Tem um homem sentado embaixo dos porta-retratos da minha esposa. Pálido e com uma expressão de agonia, a pele dele parece prestes a se decompor. Os olhos são fundos e a boca está escancarada.
- Oi? Eu digo assustado e então um barulhos ensurdecedor enche a sala, é como uma  almagáma de respiração pesada e da estática de um radio sem sintonia, uma respiração-estática. O som cessa e eu me recupero do susto. Alguma coisa começa a rasteja para fora da boca do estranho. Eu começo a me esgueirar para a porta mantendo a maior distancia possível entre mim e a coisa que agora está no colo do estranho. É uma especie de inseto, não consigo distinguir bem as formas mas ele tem asas que parecem (que são) feitas de vidro e emite um brilho pálido. As asas trabalham.

   Porta afora eu corro, descendo o mais rápido possível. A espiral de escadas parece úmida e há goteiras. Eu corro mais rápido, voando nas asas do medo. O porteiro do prédio está de costas para mim atrás da porta que dá para a rua, mas antes que eu o alcance um enxame de insetos com asas de vidro toma a porta por fora. Eu paro por um segundo estupefato. A tarja amarela da porta parece vermelha e tem algo escrito nela.”Aero”. O vidro começa a trincar e ceder.

  Correndo escadas acima desesperado, eu bato em varias portas de vizinhos sem resposta alguma. Continuo subindo e as goteiras se transformaram em uma chuva de ferrugem e mofo contaminando a espiral da escada. No andar da minha casa não existem mais portas, não tenho para onde voltar . Volto a subir e  finalmente chego ao fim. A porta vermelha que da para o terraço. “Em caso de S”. Eu me jogo com toda a força contra ela.
  Estou no terraço, não consigo sentir meu braço esquerdo. A noite chegou mas não consigo enxergar as luzes da cidade. O chão está encharcado com uma água negra oleosa que reflete um brilho pálido vindo do céu. Ergo a cabeça e um enxame de insetos com asas de vidro voa ao redor de uma criatura que está parada no ar. A gigantesca e semi-decomposta cabeça de elefante, há  tentáculos e membros humanos misturados onde devia haver o corpo e a tromba. Um tentáculo me agarra pela cintura enquanto uma mão aperta minha cabeça com força trincando minhas lentes. Sou levado até a cabeça do monstro e uma mulher está de pé lá. Ela também parece sem forma mas, ao contrario de tudo que vi até agora, ela me parece o melhor de todos os mundos.

-Boa noite meu bem. Sinto um beijo perto da bochecha. Não sinto mais dor.
Era ela? Nos meus porta-retratos?

- Porque você ainda sonha comigo?
A voz dela é bonita, tem um tom agradável e faz tudo isso parecer bom.
-Eu não entendo, não estou sonhando, eu não entendo….
O barulho de estática me interrompe e é muito mais alto agora. Ela está dizendo algo mas, não consigo entender o que é, não consigo entende-la.

-E nem quer me entender. E nem precisa. Porque não importa mais.O aperto na minha cabeça afrouxa e eu consigo ver um homem em pé ao lado dela. Ele tem uma postura estranha e agressiva e fala como se tivesse certeza absoluta do que diz. É o homem que estava no meu escritório. Arrogante ele continua com sua voz irritante de tom alto

.- Você não consegue entende-la por que isso tudo não te diz mais respeito, você morreu! Quando ele diz isso um som de vidro estilhaçando acompanha a estática e os insetos começam a cair agora sem asas.

-Você gostava e amava mas, você não existe mais. Não se lembra do nosso acordo? Você morre e eu sobrevivo. Sobreviver  é o que eu faço de melhor.Eu escalei de dentro da sua garganta e vou fazer de novo quantas vezes forem necessárias para continuar vivendo.

Enquanto o homem arrogante fala, os insetos, o polvo-humano-elefante, e aquela que é o melhor de todos os mundos definham e somem. Ele vem até mim com um sorriso de canto de boca. O chiado de respiração-estática é insuportável.

    São seis e meia da manhã e acordo com o som da minha respiração. Um copo quebrado está nos meu pés. Meu braço esquerdo está dormente porque dormi apertando alguma coisa. Desembrulho o papel que estava apertando. É uma bula de Aerolon. Passo os olhos por ela: “Em caso de super-dosagem” ,“não usar em conjunção com álcool” e finalmente “terrores noturnos”. Tudo faz sentido agora. Coloco os meus óculos e levo os restos do copo para a cozinha. Tenho que lembrar que de jogar esse porta-retratos fora quando voltar do trabalho.
Aonde foi que trinquei meus óculos?